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Contando para lembrar: Gitta Ryle, sobrevivente do Holocausto, transforma trauma em ensino

Gitta Ryle, sobrevivente do Holocausto, dando uma palestra sobre suas experiências.

“Gostaria de apresentar minha mãe, Gitta Ryle. Ela é sobrevivente do Holocausto, junto com sua irmã mais velha. Durante anos, ela tem apresentado sua história e jornada rumo ao perdão e bem-estar mental em escolas, locais de culto, centros juvenis e outras organizações.”

Janine Ryle

Sendo uma seguidora de longa data do Idealista e participante do Idealists of the World um grupo no Facebook, Janine Ryle percebeu que a história de sua mãe era um exemplo perfeito da mensagem idealista. “Minha mãe é uma idealista porque ela transformou seu trauma em ensino,” diz Janine. “Ensinar aos outros como lidar com seus traumas e não passar isso para a próxima geração. Acho isso vital neste mundo. E foi exatamente por isso que postei sobre ela e convidei-a para se juntar ao grupo.”

Gitta Ryle nasceu como Brigitta Spindel em 4 de abril de 1932, em Viena na Áustria. Quando estava com 5 anos, Adolf Hitler tinha conquistado o poder na Alemanha e estava ocupando a Áustria, onde os nazistas começaram a registrar os judeus e a recrutar os homens para os campos de trabalho forçado. O pai de Gitta conseguiu fugir para a Bélgica se passando por um caixeiro-viajante. Em novembro de 1938, soldados nazistas destruíram vitrines de lojas pertencentes à judeus, queimaram sinagogas, violaram casas e cemitérios judeus, e mataram cerca de 100 judeus em um massacre que mais tarde seria chamado de Kristallnacht, ou Noite dos Cristais. “Depois da Noite dos Cristais, minha mãe não teve mais notícias do meu pai,” Gitta relembra. “Então, ela precisou tomar uma decisão. Minha mãe não deixaria Viena porque meus avós ainda estavam vivos e não conseguiam um visto para deixar o país devido a problemas de saúde.”

Por terem olhos azuis e cabelos loiros, a mãe e a irmã de Gitta conseguiam se passar como não judias. Mas as características escuras de Gitta a tornavam um alvo óbvio. “Eu não tinha permissão para sair do apartamento durante todo o tempo em que os alemães estiveram lá,” ela lembra. “Com 6 anos, eu tinha que me esconder no armário toda vez que alguém batia na porta. Eu era uma criança muito ansiosa.” Contudo, surgiu uma luz de esperança em meio à escuridão. A mãe de Gitta ouviu falar de uma organização francesa chamada OSE (Œuvre de Secours aux Enfants), que poderia oferecer para suas filhas uma saída segura da Áustria.

Gitta com a foto de casamento de seus pais e uma foto dela quando era jovem.
Esquerda: Gitta Ryle, segurando a fotografia de casamento dos seus pais. Direita: A jovem Gitta com 6 anos.

Em 22 de março de 1939, Gitta e Renee foram colocadas num trem com destino à França. “Minha mãe arrumou uma pequena mala e nos levou para o trem. Não sei o que ela disse, mas sei que eu estava com raiva e chorando e que não entendia por que ela estava nos deixando ir, e pensei que ela não nos amava mais—assim como meu pai. Senti-me abandonada. Não tinha nem 7 anos. Renee estava com 10.” Aterrorizadas e confusas, Gitta e sua irmã embarcaram no trem sem saber se veriam seus pais novamente. “Os nazistas conquistaram Paris e, assim que isso aconteceu, eles nos levaram para o centro da França,” Gitta se lembra. “De lá nós fomos para o Château du Masgelier. Não havia muita comida. Lembro que era frio e ficávamos doentes com frequência.”

No Château du Masgelier, Gitta e Renee de repente foram reunidas com seu pai. “Estava tão feliz em vê-lo que não fiz perguntas,” Gitta relembra. “Renee também não perguntou nada, por isso não sabemos—ou nos esquecemos—o que ele disse sobre como nos encontrou. Mas de alguma forma ele sabia sobre a OSE.” Independentemente de como ele as tenha encontrado, Gitta e Renee estavam felizes por rever o pai e ansiosas para irem embora com ele. “Ele conseguiu um trabalho por perto em um lar de idosos, onde tinha um lugar para comer e dormir, e nos finais de semana vinha nos visitar. Todas as vezes eu dizia: ‘Vamos, leve- nos embora agora.’ E ele respondia: ‘Em breve, em breve.’ Não sei o que estava acontecendo, não sei se ele estava tentando nos tirar de lá, mas de repente não o vimos mais.”

Somente muito depois é que Gitta soube o que aconteceu. “Um francês não judeu, que queria o emprego do meu pai naquele lugar, contou à polícia que meu pai era judeu. Ouvimos mais tarde que ele estava em uma prisão local e que depois foi levado para Drancy in Paris. Nunca mais o vimos. Ele morreu em Auschwitz, e nunca saberemos como—se atiraram nele ou se o puseram nas câmaras de gás—e levo isso comigo até hoje. Sinto falta dele todos os dias.”

The Château du Masgelier.
Château du Masgelier

Os nazistas continuaram dominando a França, se espalhando por Masgelier e outras cidades, frustrando todas as tentativas de fuga que a OSE preparava para as crianças. “Eu estava com muita raiva,” diz Gitta sobre aquela época. “Não queria viver numa sociedade como essa, onde tinha que ficar correndo e me escondendo. Eu também não entendia que era judia e que era por isso que estavam tentando me matar. Era tudo muito confuso.” Eventualmente, a perseguição nazista forçou a OSE a separar Gitta e Renee entre famílias diferentes em uma cidade chamada Romans-sur-Isère. Foi quando a guerra bateu à porta de Gitta e ela começou a entender a situação em que se encontrava. “Os aviões vinham, as bombas caíam e eles atiravam. Estávamos no campo com as cabras e as ovelhas, e tínhamos que correr discretamente enquanto as bombas continuavam caindo. Eu estava com cerca de 12 anos e entendi o que era uma guerra.”

Apesar da turbulência, Gitta e Renee sobreviveram à guerra. Quando era seguro novamente a OSE as trouxe de volta à Paris e explicaram que seriam levadas à mãe, que havia fugido para a Inglaterra depois que seus pais foram capturados. Os britânicos colocaram anúncios de emprego em jornais austríacos para ajudar os judeus a fugirem para um lugar seguro, e a mãe de Gitta, sendo uma cozinheira e confeiteira habilidosa, conseguiu garantir um emprego em Londres. Ela se manteve informada sobre o paradeiro das filhas através de mensagens seguras da Cruz Vermelha e da OSE. Quando era seguro, Gitta e Renee foram colocadas em um barco para cruzar o Canal da Mancha e se juntarem à mãe.

“Eu tinha esquecido o alemão,” Gitta se lembra do reencontro. “Eu só sabia falar francês. Renee ainda conseguia falar alemão, então ela traduzia para mim.”

Depois de um tempo em Londres, Gitta, Renee e a mãe embarcaram no RMS Queen Elizabeth com destino a Nova Iorque. Elas chegaram aos EUA no Dia do Armistício, em 11 de novembro de 1946, e se estabeleceram em Detroit, no estado de Michigan. Apesar da guerra ter chegado ao fim, a vida das irmãs continuou difícil. “Fomos para uma escola judaica, com judeus de várias classes sociais, mas eles foram desagradáveis com a gente. Faziam bullying e caçoavam de nós. Eu me lembro de chegar em casa e falar com minha mãe: ‘Cansei. Não quero viver numa sociedade como essa. Os não judeus querem nos matar e os judeus não gostam de nós.’” As dificuldades fizeram com que as irmãs encontrassem seu próprio caminho para lidar com a situação. “Eu apenas sobrevivia,” diz Gitta sobre essa época. “Eu não desfrutava a vida.”

Em julho de 1951, Gitta se mudou com sua mãe para a Califórnia, onde conheceria e se casaria com seu marido, Bob. Na Califórnia, junto com seu marido, Gitta finalmente começou a encontrar alguma paz em sua vida, criando seus filhos e tentando deixar o passado para trás.

“Acho que sempre ouvimos sobre isso enquanto crescíamos,” diz Janine sobre a história de sua mãe. “Acho que perguntamos para ela, porque íamos à igreja, frequentávamos escolas religiosas, fazia parte da nossa educação e eles, claro, falavam sobre o Holocausto. E minha mãe dizia: ‘Bom, nós passamos por isso.’ Eu estava com uns 12 anos mais ou menos quando começamos a fazer perguntas sobre essas coisas, ela contava e conhecíamos um fragmento ou outro da história.”

Ao longo de anos de terapia e reflexão, Gitta acredita que agora possui uma perspectiva de sua história que pode oferecer aos outros. “Sempre conto nas histórias que existe o yin e o yang da vida,” diz ela sobre suas apresentações em escolas e outras organizações. “Em todo lugar existem pessoas boas e más. Eu tento ensinar aos alunos que eles precisam saber disso para que possam entender a vida um pouco diferente.” Ao contar sua história, Gitta encontrou uma forma de transformar a si mesma e sua perspectiva. “Agora eu desfruto a vida, e não apenas sobrevivo,” ela diz. “Houve uma mudança completa na minha personalidade, quando me permiti abandonar a negatividade. Eu digo às crianças que minha forma de perdoar, mas nunca esquecer, é que eu me perdoo por me apegar à culpa, à raiva, e devolvo isso aos agressores. Os agressores—os valentões na escola, ou qualquer outra pessoa—são donos daquilo que estão fazendo. Dessa forma, eu fico livre, agora que não preciso mais me apegar ao que não me pertence.”

Para Janine, isso é o que faz de sua mãe uma idealista. “Ao ouvir o que ela fez e depois quando começou a contar sua história nas escolas, eu percebi que ela está transformando vidas com suas palestras. Ela já discursou em centros juvenis, para adultos, em associações benevolentes, ao Defense Language Institute e todos os seus chefes militares.”

A influência de Gitta impactou ainda mais profundamente a própria Janine, dando inspiração para que se tornasse uma idealista e agisse para fazer do mundo um lugar melhor. “A experiência dela me deu uma empatia especial pelos refugiados, pelas pessoas que estão passando por dificuldades e também pelas pessoas que estão tentando vir para este país e aprender inglês. Eu voltei a estudar para conseguir um mestrado e poder ensinar inglês, e é isso que faço agora. Meu objetivo é eventualmente começar a trabalhar com refugiados de alguma forma. Isso também me fez consciente de muitos problemas de justiça social e da importância de as pessoas poderem viver uma vida com qualidade. Todos têm potencial quando recebem uma oportunidade.”

Gitta, sua filha Janine, seu neto Bennett e sua nora Susan, em um banco dedicado ao falecido marido de Gitta, Bob.
Gitta, sua filha Janine, seu neto Bennett e sua nora Susan, em um banco dedicado ao falecido marido de Gitta, Bob.

Atualmente, Gitta dedica seu tempo compartilhando sua história e ajudando os outros da forma que pode. “Quando percebo pessoas presas em suas angústias do passado, se me permitem, tento ajudá-las,” ela conta. “Eu ensino as crianças sobre perdoar a si mesmo, mas nunca esquecer, e explico que a razão pela qual faço isso é porque estou viva. Sobrevivi à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto quando era criança, e eles são meus embaixadores e mensageiros. Este é o meu propósito agora.”

O mais importante para Gitta é gratidão. “Estou tão cheia de alegria agora,” ela diz, “e extremamente feliz por estar viva. Seja qual for o tempo que me resta neste mundo, estou aproveitando cada momento. Faço meus agradecimentos pela manhã, saúdo meu marido e meus pais, pois tenho fotos deles no meu quarto e simplesmente agradeço por terem me dado vida.”

“A vida traz coisas inusitadas,” ela adiciona, “temos que acolher o que for bom e deixar ir o que for ruim.”

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  • Tradução: Débora Bodevan (deborabodevan4@gmail.com)

Acesse o original em inglês aqui.

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